10.8.08

Borboletas sem asas

Os balcões da cervejaria criavam entre eles corredores estreitos por onde os empregados circulavam. Do lado de fora havia os bancos onde os clientes se sentavam debruçados sobre as costeletas e os bifes de outros animais.

Com passos curtos e balanceados, circulava nesse labirinto o jovem Butterfly, cumprindo, apressado, o seu papel de recolher a louça suja e repor a lavada, ouvir os protestos dos seus superiores – sai-me daí que estorvas - , e contar o tempo que faltava para sair. Ele que apresentou currículo para empregado de balcão, e cunha de um doutor, ali andava carregando pratos e talheres, lavados para cá e sujos para lá, copos com lábios ainda agarrados...

Era dado à pintura, se tivesse tempo, e à dança do ventre, se tivesse onde. Mas era ali que o destino o colocara, onde esperava justiça. Esperava!... Passavam meses, já para mais de um ano, e a justiça tardava, como sempre.

Um, dois minutos antes do serviço fechar, chegava o Coronel que, com todo o respeito que é devido às autoridades e, por força de razão – ou por razão de força – quando são militares, tinha sintomas de senilidade mais do que se admite numa cervejaria de primeira classe. Sentava-se o idoso, mudava de lugar, chamava o empregado e, até que alguém viesse, dominava a sala com voz de comando.

- Faça o favor ! – atendia o empregado.
- Não é favor nenhum. Quero uma sopa.

E enquanto o diligente funcionário ia buscar uma colher e um guardanapo, o Coronel elevava mais a voz para reclamar:

- Mas que esteja quente.

Depois, num sussurrar mais intimista:
- Não sabem que a sopa, para ser boa, é quente.

As vozes de comando e de sussurro, alternando, prosseguiam sem nexo e sem audiência. O pessoal e a fraca clientela que havia àquela hora, ouviam com paciência e consentiam à velhice aquele desvario, certos de que para velhos vamos todos.

- Ó Butterfly, Butterfly! – era ele a chamar o rapazinho que passava a recolher os últimos destroços desse dia, agora que era tempo de arrumação geral.

Butterfly não respondia.

- Ela é muito sensível, esta rapariga. Olha, ó Butterfly... Muito sensível.

Ninguém dava importância ao que dizia o velho. Ele sabia disso. Se sabia! E nem sequer tinha tempo de esquecê-lo, de tal modo lho mostravam dia a dia, a todo o momento, os seres vivos deste mundo em que vivia ainda . Com a idade, tornamo-nos inúteis, dispensáveis, fantasmas, invisíveis. Logo, inimputáveis, o que concede o direito de dizer tudo porque tudo é nada, é disparate se for dito da forma desabrida como o faz o Coronel, e com a sua idade.

Arumado o que havia para arrumar, Butterfly já não anda por ali a mostrar as madeixas alouradas, mas, lá para dentro onde quer que esteja, é bem possível que se ponha a pensar no que lhe quer o velho. E o velho a pensar no que quer Butterfly. Uma estranha cumplicidade os aproxima, porventura nascida da solidariedade entre dois homens que sofrem a impotência para vencer o desprezo da comunidade, a exclusão, a solidão, a desesperança.

É certo que Butterfly pode alcançar o privilegiado posto de empregado de balcão, e o Coronel ainda vai a tempo de conquistar o Céu, pelas bem-aventuranças, mas convenhamos que são fracas certezas para quem tem só por certo arrastar-se pela Terra.

Não tarda que a casa feche as portas e então Butterfly e o Coronel hão-de tornar à crua realidade, com seus nomes verdadeiros, seguindo cada um para seu lado – que é lado-nenhum.

Talvez o rapazinho se vá a rir do velho. E o velho, do rapaz.

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