Com passos curtos e balanceados, circulava nesse labirinto o jovem Butterfly, cumprindo, apressado, o seu papel de recolher a louça suja e repor a lavada, ouvir os protestos dos seus superiores – sai-me daí que estorvas - , e contar o tempo que faltava para sair. Ele que apresentou currículo para empregado de balcão, e cunha de um doutor, ali andava carregando pratos e talheres, lavados para cá e sujos para lá, copos com lábios ainda agarrados...
Era dado à pintura, se tivesse tempo, e à dança do ventre, se tivesse onde. Mas era ali que o destino o colocara, onde esperava justiça. Esperava!... Passavam meses, já para mais de um ano, e a justiça tardava, como sempre.
Um, dois minutos antes do serviço fechar, chegava o Coronel que, com todo o respeito que é devido às autoridades e, por força de razão – ou por razão de força – quando são militares, tinha sintomas de senilidade mais do que se admite numa cervejaria de primeira classe. Sentava-se o idoso, mudava de lugar, chamava o empregado e, até que alguém viesse, dominava a sala com voz de comando.
- Faça o favor ! – atendia o empregado.
- Não é favor nenhum. Quero uma sopa.
E enquanto o diligente funcionário ia buscar uma colher e um guardanapo, o Coronel elevava mais a voz para reclamar:
Depois, num sussurrar mais intimista:
- Não sabem que a sopa, para ser boa, é quente.
As vozes de comando e de sussurro, alternando, prosseguiam sem nexo e sem audiência. O pessoal e a fraca clientela que havia àquela hora, ouviam com paciência e consentiam à velhice aquele desvario, certos de que para velhos vamos todos.
- Ó Butterfly, Butterfly! – era ele a chamar o rapazinho que passava a recolher os últimos destroços desse dia, agora que era tempo de arrumação geral.
Butterfly não respondia.
- Ela é muito sensível, esta rapariga. Olha, ó Butterfly... Muito sensível.
Ninguém dava importância ao que dizia o velho. Ele sabia disso. Se sabia! E nem sequer tinha tempo de esquecê-lo, de tal modo lho mostravam dia a dia, a todo o momento, os seres vivos deste mundo em que vivia ainda . Com a idade, tornamo-nos inúteis, dispensáveis, fantasmas, invisíveis. Logo, inimputáveis, o que concede o direito de dizer tudo porque tudo é nada, é disparate se for dito da forma desabrida como o faz o Coronel, e com a sua idade.
Arumado o que havia para arrumar, Butterfly já não anda por ali a mostrar as madeixas alouradas, mas, lá para dentro onde quer que esteja, é bem possível que se ponha a pensar no que lhe quer o velho. E o velho a pensar no que quer Butterfly. Uma estranha cumplicidade os aproxima, porventura nascida da solidariedade entre dois homens que sofrem a impotência para vencer o desprezo da comunidade, a exclusão, a solidão, a desesperança.
É certo que Butterfly pode alcançar o privilegiado posto de empregado de balcão, e o Coronel ainda vai a tempo de conquistar o Céu, pelas bem-aventuranças, mas convenhamos que são fracas certezas para quem tem só por certo arrastar-se pela Terra.
Não tarda que a casa feche as portas e então Butterfly e o Coronel hão-de tornar à crua realidade, com seus nomes verdadeiros, seguindo cada um para seu lado – que é lado-nenhum.
Talvez o rapazinho se vá a rir do velho. E o velho, do rapaz.
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