19.9.11

Os antigos amigos


Entre os que defendem ou consentem o regime autoritário e os que reclamam liberdade política e democracia, Cuba divide-se cada vez mais.

Pesa de um lado o papel histórico da revolução de 1959 e o odioso do inimigo norte-americano com as suas tentativas de interferir violenta e economicamente na vida interna do país, por razões ideológicas; pesa do outro lado a traição que o próprio regime exerce contra os seus proclamados ideais libertadores, impondo o autoritarismo, a censura e a repressão políticas e também a incapacidade para implementar soluções económicas adequadas.


No recrudescimento deste conflito reprimido, as novas tecnologias de comunicação abrem uma brecha parcialmente incontrolável no silêncio imposto - os cubanos retidos e os exilados usam agora a internet e as mensagens via telemóvel, os blogues, o facebook e o twitter. Os que podem e na medida em que podem.

Apesar de tudo, porém, nada se compara à força afectiva da canção. Nós, os portugueses, sabemos quanto nos inspiraram e ainda inspiram as vozes de Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco e Sérgio Godinho, Jorge Letria, Fanhais, Cília, Samuel... E quanto desprezámos - os poucos que assumiam o lado da "desordem" - nomes consagrados no altar do conformismo e que a História se encarrega de esquecer.

“A cantiga é uma arma”, por isso os cubanos vão tentando arrumar entre os seus cantores, os amigos e os “inimigos”. E neste contexto vamos assistindo a fenómenos dramáticos para o nosso imaginário, como aquele que separa Sílvio Rodriguez e Pablo Milanés, esses dois magos da canção que o continuam sendo, juntos ou separados.


Mais triste do que esta diferença, só mesmo a divergência entre o Fidel das últimas décadas e o revolucionário de 1959. Ou é tudo o mesmo assunto?

14.9.11

O LIVRO NEGRO
da “União Europeia”

Angela Merkel afirmou há dias que a sua «missão central é solucionar a crise europeia». Nada menos! E que «O futuro da Alemanha é inseparável do futuro da Europa».

Tal ambição é de fazer inveja ao Führer do III Reich – mutatis mutandis. Tal presunção faz-nos pensar o que estão a fazer e a gastar as centenas de deputados no Parlamento Europeu e representantes na Comissão Europeia, mais os funcionários e infra-estruturas de apoio respectivo. Já para não perguntar o que faz o Conselho Europeu.

Na UE os direitos dos cidadãos são secundarizados pelos direitos dos grandes credores, as soberanias nacionais são secundarizadas pela dominação formal das grandes potências do continente, a própria paz é secundarizada pelas “intervenções humanitárias” militares... A propósito: se o preço da paz é prescindir da soberania, porque não se evitaram todas as guerras até hoje?

Todos os mitos vão ruindo e a própria invocação dos EUA como exemplo de prosperidade assente num sistema de estados federados, esconde que amanhã a Federação Europeia, isto é, os "Estados Unidos da Europa", terá uma Nova York para a Alemanha e para a França, mas terá também vários “Mississipis” espalhados pelo sul. As recentes notícias sobre a pobreza nos Estados Unidos da América desdizem a tese de que o desenvolvimento e a equidade social dos países dependam da rendição das suas soberanias. Mais de 46 milhões de pobres, correspondendo a mais de 15 % da população, na maior potência mundial, é arrasador.

Alguém há-de escrever a História da União Europeia, não dos seus projectos e tratados mas dos seus sucessos e fracassos. E então é bem provável que se pareça muito com O Livro Negro da Europa Contemporânea.

Nota:
O governo central em Washington considera por definição como pobres os  indivíduos com rendimentos abaixo de 11.140 dólares anuais ou as famílias de 4 pessoas que obtenham menos de 22.300 dólares ao ano. Acrescente-se que não existe um Serviço Nacional de Saúde e que mais de 46 milhões de norte-americanos não têm qualquer Plano de Saúde.

9.9.11

Desacordo ortográfico

Acabo de ouvir Vasco da Graça Moura (na foto) dizer que os brasileiros devem escolher se querem falar português ou não. Com esta frase, ele exprime com simplicidade e com rigor, o que é não só o pensamento da esmagadora maioria dos académicos portugueses como também a esmagadora maioria se não a totalidade dos cidadãos. Nisto, como na poesia, Vasco Graça Moura é admirável. (Pena é que se perca na política).

Numa sincera homenagem, aqui invoco um excerto do seu poema "lamento para a língua portuguesa"

não és mais do que as outras, mas és nossa,
e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia-a-dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
mais valia que fossem de outra sorte
em cada um a força da vontade
e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da verdade,
e que a ti nos prendesse melhor grade.
bem que ao longo do tempo ensurdecias,
nublando-se entre nós os teus cristais,
e entre gentes remotas descobrias
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas mais,
perdidas no enredar das nossas vias
por desvairados, lúgubres sinais,
mísera sorte, estranha condição,
mas cá e lá do que eras tu te esvais,
por ser combate de armas desiguais.
matam-te a casa, a escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão
de estranhas novidades, a ciranda
de violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.
(continua)

NOTA:
De acordo com a resolução n.º 8 do Conselho de Ministros, de 25 de Janeiro de 2011, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entra em vigor no sistema educativo português no ano letivo de 2011/2012.

1.9.11

A crise da crise

De cépticos a cínicos
por: Emir Sader
O cepticismo parece um bom refúgio em tempos em que já se decretou o fim das utopias, o fim do socialismo, até mesmo o fim da história. É mais cómodo dizer que não se acredita em nada, que tudo é igual, que nada vale a pena. O socialismo teria dado em tiranias, a política em corrupção, os ideais em interesses. A natureza humana seria essencialmente ruim: egoísta, violenta, propensa à corrupção.

Nesse cenário, só restaria não acreditar em nada, para o que é indispensável desqualificar tudo, aderir ao cambalacho: nada é melhor, tudo é igual. Exercer o cepticismo significa tratar de afirmar que nenhuma alternativa é possível, nenhuma tem credibilidade. Umas são péssimas, outras impossíveis.
(...)
Ser optimista não é desconsiderar os graves problemas de toda ordem que o mundo vive, não porque a natureza humana seja ruim por essência, mas porque vivemos em um sistema centrado no lucro e não nas necessidades humanas – o capitalismo, na sua era neoliberal. Desconhecer as raízes históricas dos problemas, não compreender que é um sistema construído historicamente e que, portanto, pode ser desconstruído, que teve começo, tem meio e pode ter fim. Que a história humana é sempre um processo aberto de alternativas (...)
31 de Agosto de 2011

* De origem libanesa, Emir Sader é sociólogo e cientista político brasileiro e membro do conselho editorial do periódico inglês New Left Review.

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