Em defesa de Vlasov – só para ter o prazer de contrariar o estimado autor do post – a primeira ideia que me ocorreu, foi de imaginar o que aconteceria aos grandes heróis consagrados pela História – se os há pequenos – no caso de terem perdido as suas lutas e daí decorrer a sua tortura pelos vencedores. Tarefa árdua e ociosa, que além de obrigar a uma pesquisa fastidiosa, teria por conclusão uma hipótese mais ou menos fantasiosa.
Outra ideia, inspirada pelo método literário e cinematográfico, mas também pelo método indutivo das ciências, era pegar numa personagem supostamente exemplar e, com essa árvore, pretender retratar uma floresta humana; isto é, demonstrar que o comportamento de Vlasov era comum, normal. Mas esta ideia cheirava demasiado a sofisma para que o não fosse, e eu tenho os meus escrúpulos.
Da negação daquelas duas ideias – oh dialéctica bendita! – emergiu a solução que adoptei: negar a insinuada representatividade do caso Vlasov, afinal uma história individual, e negar a verosimilhança das confissões sob o efeito de tortura (ou ameaça de castigo físico cruel, se não é o mesmo).
Mas valerá a pena? Quem conhece Vlasov, afinal, além do António Teixeira e, seguramente, do meu amigo João Ferro? Ele não é Trotsky, por muito semelhante que fosse a sua crítica do regime soviético – que não a sua visão alternativa. Ele não é Kruchov ou Gorbachov… Ele não é senão uma figura apagada (!) da História, a quem eu, e António Teixeira antes de mim, fizemos o favor de atribuir alguma importância nos nossos blogues.
E que tal se falássemos de Himmler, o chefe da polícia nazista que abandonou Hitler e tentou entregar a Alemanha para os Aliados em troca de sua liberdade? Não teve melhor sorte que Vlasov, correndo no sentido contrário ao deste, mas sempre é mais conhecido.
Ok, eu sei que não temos que fazer um concurso de traidores...
Nota:
"O Beijo de Judas" de Michelangelo Caravaggio, inserido no topo deste post, não documenta as personagens desta história, como já terão reparado...
8 comentários:
Mais perto dos nossos dias, ainda que num contexto diferente, temos um traidor com "T" grande, o biltre Pinochet.
egoismo, todos nos somos um bocado egoistas, o que fazemos com ele e que faz a diferenca
Jokas
paula
É mais do que simpático da sua parte, António Marques Pinto, e promove-me na prática, quando considera que eu apresento teses quando eu me limito a contar uma história.
Se calhar é por ser sobre pessoas apagadas da História. O termo, perdoe-me, mas não é feliz, porque a história soviética daquele tempo está repleta de pessoas literalmente “apagadas” das fotografias… Serão pessoas discretas daquelas que só eu e o seu amigo João Ferro terão ouvido falar. Se calhar deliberadamente porque percorreram percursos sinuosos e toda as Histórias Oficiais – aqui é a da Grande Guerra Patriótica! – gostam de bons e maus e detestam sinusóides.
Se calhar o que lhe parecerá estranho terá sido eu não ter diabolizado o traidor. Mas quererá o António Marques Pinto, dado que escolheu o tema da traição, esclarecer-me aquilo que terá traído Vlasov: terá traído a pátria (em russo, a “rodina”), terá traído a causa comunista, ou terá traído a sua classe de origem? Ou terá traído todas? Ou uma combinação delas?
Porque já agora, e visto que o António Marques Pinto quer que eu me refira a alguém equivalente do lado alemão, eu também não vou seguir a sua sugestão de um dos “maus” como é o caso de Himmler. Que tal se escolher Friederich Paulus, outra pessoa “apagada” que eu até já mencionara no meu poste? O que achará o António que separará, para além do resultado final da Segunda Guerra Mundial, as traições daqueles dois generais (Vlasov e Paulus)?
Não achei nada estranho que o António Teixeira não tivesse diabolizado o traidor. Eu próprio, se reparar, também não o faço. Pelo contrário, problematizo a diabolização que vulgarmente se faz destas personagens. E não é só porque não acredito no diabo, é por três ordens de razões que julgava ter explicitado com mais clareza:
1)Tenho dificuldade em fazer juízos morais sobre pessoas confrontadas com situações de violência em que eu nunca fui testado. Neste sentido é que eu questionei “o que aconteceria aos grandes heróis consagrados pela História no caso de terem perdido as suas batalhas e daí decorrer a sua tortura pelos vencedores.
2)Do ponto de vista (oficial) de Vlasov, combater o regime soviético colocava-o do lado do povo descontente – que o povo é muita e variada gente – e dos «muitos milhares dos melhores comandantes, incluindo marechais, que foram presos e fuzilados ou enviados para campos de trabalho, para nunca mais voltar» – como ele diria.
3)O contexto histórico e os sentimentos subjectivos das populações que lhe estão associados, criaram grandes equívocos na época, de que as biografias de Stefan Zweig dão testemunho, no plano pessoal, para citar um exemplo não-militar.
Nada disto santifica os comportamentos pró-nazis, a meu ver, mas quem tolera um Mário Soares que se apoia na CIA contra o PCP, pode bem olhar com alguma ligeireza moral para um Vlasov.
Quanto a este ser traidor, reconheço a complexidade do conceito. Como alguém já observou, a traição - se vitoriosa - passa a patriotismo.
Num processo revolucionário, traidor é o militar que volta as armas contra o exército que servia ou aquele que volta as armas contra a revolução? Spínola traiu a revolução socialista, a revolução democrática, o seu povo, o seu país? Otelo Saraiva de Carvalho traiu o Exército Português? E o que é o Exército Português no contexto de uma mudança de regime?
Parece que somos forçados a considerar que trair é um verbo transitivo, isto é, carece de complemento directo, só faz sentido quando se refere o objecto da traição.
Parece claro que o conceito de “traição nacional” é diferente do conceito de traição moral. Esta aplica-se a Judas – na versão tradicional – visto que não traiu por convicção mas por interesse pessoal, material.
Quanto a Vlasov, e mesmo que fosse por convicção, ou por mudança de convicção, que ele tivesse mudado de trincheira, o facto é que passou do exército de um país para o exército de outro país no contexto de uma guerra, e esta circunstância não escapa ao conceito militar de traição. A que não terão escapado também alguns beijos como se usava ou usa naquela região.
De Friedrich Paulus, tanto quanto julgo saber, já teriamos que falar em rendição mais do que em traição, mas chegados aqui é manifesto que o jogo das palavras pode ser perigoso para avaliar comportamentos em contextos tão difíceis.
Dizer que Paulus traiu Hitler, pode fazer sentido; fazer disso um juizo de valor, é difícil, pois são as circunstâncias e não as convicções que determinam estes comportamentos. Embora para mim seja uma virtude, por si só, trair Hitler, e uma segunda virtude salvar a vida dos soldados.
Como já morreram todos, dispenso-me de dizer mais que isto: não queria nenhum deles como amigo.
É um deleite apreciar a vossa dialética.
Já fiz um comentário no "outro" blog acerca deste assunto.
Se bem que não seja isto que se esteja a discutir é de referir que o Paulus voltou com vida á Alemanha.
Dos 24 generais alemães 23 volatram com vida.
Dos 106.000 homens só 6.000 voltaram com vida.
Na Antiga União Soviética as hierarquias eram muito a sério.
João Moutinho, agradeço a sua contribuição para este palratório. Registo a distinção de classes que demonstra existir entre os generais e os homens... Que tomada à letra seria mais uma distinção de espécies, hehe.
Digo isto com simpática ironia, entenda, ou não fosse eu admirador de Vasco Gonçalves, por exemplo.
A distinção de espécies existia também nos Americanos.
É o caso do Von Braun, oficial das SS e que matou mais prisioneiros com as suas experiências do que cidadãos ingleses com as "salsichas voadoras".
As vantagens de ser religioso é que de alguma forma acreditamos "cá se fazem lá se pagam".
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