23.1.10

Haiti como metáfora

Em situações extremas como aquela que vemos no Haiti por estes dias, a condição humana parece revelar-se de forma inequívoca. A solidariedade de todo o mundo, seja no domínio dos estados, das organizações internacionais ou da iniciativa individual, parece deitar por terra, qual terramoto ideológico, a ideia de que “o homem é o lobo do homem” (1). Temos vontade de ajudar – esse é que é o sentimento geral.
Em Cuba,
que volta a viver um período dramático de penúria acentuada, a população ainda assim se mobiliza para enviar alguns dos seus parcos bens – peças de roupa e pouco mais terão para dar – com destino ao povo vizinho. Não se trata aqui da solidariedade socialista que o marxismo proclama; é a solidariedade humana – a “natureza humana”, ao que parece.

Parece. Mas é?

Karl Marx defendia que o comunismo criaria um “homem novo”, solidário, fraterno, abolindo o homem egoista e agressivo que a concorrência alimenta nas sociedades capitalistas. Estas vivem e alimentam-se da “exploração do homem pelo homem”.

A possibilidade de chegar ao “homem novo” não seria uma questão de boa-vontade, de criar convicções morais, mas sim de criar condições materiais de desenvolvimento e satisfação das necessidades de todos – a democracia económica. Extinto o antagonismo de classes e desenvolvida que fosse a economia de modo a satisfazer todas as necessidades humanas, seriam abolidas as desigualdades sociais e os sentimentos de conflitualidade que é gerada pela escassez de satisfação dos cidadãos.

O conceito parecia tão lógico e tão justo quanto necessário. E daí que muitos milhões acreditássemos e defendêssemos a sua realização. Tão necessário, tão desejado, que nem discutiamos se o homem é mesmo tão naturalmente fraterno quanto a tese supunha. Esse conceito serve ainda hoje de suporte moral, de legitimação interna para os regimes que se reclamam de orientação socialista.

Mas será que o Homem é o anjo do Homem?
Claro que as pilhagens e as agressões violentas estão a par das acções de solidariedade no Haiti, mas isso pode ser levado à conta do tal malefício das diferenças entre os possidentes e os famintos, e da escassez de bens para satisfazer as necessidades humanas – o que se enquadra ainda na tese marxista. O que pode ser duvidoso é que os haitianos, quando fôr reposta a normalidade relativa das suas vidas, sejam mais solidários e generosos do que eram antes, isto é, que os ladrões e os oportunistas não continuem a sê-lo.

Saindo do Haiti aqui citado apenas como metáfora da condição humana, o que aprendemos com a História é que as necessidades dos homens são infinitas, logo insaciáveis – não há sociedade de abundância que satisfaça o nosso apetite. E as sociedades socialistas que conhecemos não foram nem são sociedades de abundância...

Restam-nos duas perguntas:
será que ainda é possível mudar drasticamente a sociedade de modo a chegar à democracia económica?;
e será que ela pode ser atingida sem sacrifício das liberdades legítimas das populações?


A necessidade dita que devemos tentar. O egoismo dos privilegiados dita o contrário. Manifestamente o conflito existe. E os agentes da mudança, aqui como na América, por alguma razão ou por várias não se fazem acreditar quanto baste – vivemos na corda-bamba dos cinquenta por cento...

Helen Keller(2), 60 anos depois de Marx, terá sentenciado que “A segurança é uma grande superstição. Não existe na natureza”. Que isso não desanime os haitianos e a Humanidade em geral, que não era essa a intenção da grande filantropa.

(1) Tomás Hobbes nasceu em Westport, em 1588. Ele pretende justificar o poder absoluto do soberano com o argumento de uma origem natural decorrente da maldade da natureza humana.
(2) Helen Keller nasceu em Junho de 1880 no Alabama.

2 comentários:

Mar Arável disse...

Andamos quase todos

à pergunta de novos caminhos

entretanto...

deus existe?

antónio m p disse...

Aí está uma pergunta que nunca me tinha ocorrido...!