Com uma expectativa de recuperação económica em que ninguém acredita, e uma perspectiva de desemprego cada vez mais dramática, o que se tem por certo é a deterioração das condições e remunerações do trabalho e do apoio social no desemprego, na reforma e na doença. Políticas de sacrifício são apresentadas como inevitáveis e são aplicadas, desde logo, a quem depende do rendimento do trabalho.
Os grupos profissionais reagem com protestos e greves. Os governos apercebem-se de que não estiveram a lidar com expressões matemáticas quando decidiram nos seus gabinetes os sábios orçamentos; era com vidas humanas, famílias, crianças, que estavam a lidar.
Até certo ponto já sabiam disso, claro, e até certo ponto tiveram a preocupação de acautelar os efeitos humanos, sociais e políticos. Até certo ponto acreditaram que o Governo fez o que podia fazer no fio desta navalha político-económica – “A nossa primeira prioridade é o emprego”, proclamam ao mesmo tempo que decretam com entusiasmo a redução para metade dos funcionários públicos...
A partir do ponto a que chegaram, os governantes estariam a romper com o sistema, com o liberalismo social-democrata, o que se lhes afigura uma fantasia aberrante. Até certo ponto é de facto uma fantasia – na medida em que não é o tempo. Mas quem sabe quando é? Quantas falências mais? Quantos mais desempregados? Quantos pobres mais? Quantos ordenados congelados, quantas carências de serviços públicos, quantas manifestações, greves, revoltas, crimes de origem social, são necessários para que a sociedade entre em ruptura?
É que numa coisa não se enganou Karl Marx: «as mudanças quantitativas operam mudanças qualitativas». E raramente elas são calculáveis no tempo. Afinal quem sabe o momento em que a água passa dos 99 aos 100 graus, isto é, de água a vapor? Quem sabe o momento em que se evaporam as convicções de agora? O que se sabe é que num processo de aquecimento imparável, a água vai ferver. E quem diz a água diz a sociedade.
(Fotograma de Tempos Modernos, de Charlie Chaplin)
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