Assim como acontece com os anti-comunistas, também os comunistas podem ser classificados em “primários” e... normais. O amigo R. a quem nós chamávamos carinhosamente de Staline (!), identificava-se com o comunismo primário, uma grelha simplificada e deformada de análise que comprime as diversidades em dois campos, como se a Humanidade vivesse entrincheirada e o mundo fosse um cenário de guerra. Esta visão levava-o a considerar com toda a facilidade que Gorbachov não passou de um traidor, que Mário Soares era agente da CIA e que eu sou “uma folha seca”, como diz secamente Jerónimo de Sousa.
Se o amigo R., fosse ignorante, podia vir a ser esclarecido; se fosse estúpido, podia ser perdoado, mas ele era outra coisa: um comunista primário. Como os anti-comunistas primários, não tinha por onde evoluir, escolhera aquela personagem e representava-a, com ou sem convicção, em todas as circunstâncias.
Este método infantil de análise política e social ocorre hoje com patética exuberância nas “Reflexiones” de Fidel Castro e nas “conversas em família” de Hugo Chavez, mas também num vasto espaço do movimento comunista assumido e organizado que não se fica pelo Partido Comunista Português e até abrange sectores que simplesmente, simplificadamente, se inscrevem no anti-imperialismo à maneira do século passado. Instalados em conceitos formais, barricados no medo de arriscar, repudiam as lutas populares e os seus apoiantes se não forem lideradas por homens da sua confiança política, se não seguirem atrás duma bandeira que se confunda com a sua. Sob o manto diáfano das bandeiras em que confiam, poderão revelar-se regimes corruptos, injustos, violentos, que sempre terão a confiança destes amigos incondicionais. O anti-imperialismo tudo justifica.
É assim que parece ganhar força a corrente que condena a intervenção da ONU na Líbia, que é como quem diz, que se coloca do lado da família Khadafi contra a família líbia, do lado do ditador contra o movimento de protesto democrático. Uma corrente que parece ganhar força porque os revoltosos se revelam cada vez mais frágeis no confronto com as forças armadas do regime.
É uma interpretação estranha de “libertação dos povos”, de “internacionalismo”, de socialismo. É a visão de quem nasceu para combater os dinossauros e faz disso o seu objectivo de vida mesmo que eles tenham sido extintos há 65 milhões de anos – não percebendo que os animais mudam de tamanho e de forma como tudo o que é vivo; não percebendo ou não querendo perceber os fenómenos contraditórios e conflituais que se desenvolvem no seio dos próprios países.
A intervenção estrangeira nascida para impedir um massacre na Líbia, pode descambar apesar de todas as garantias e reservas declaradas pelos países intervenientes, mas não é pelo desvio que se identifica o caminho. Mais, é na medida em que somos autores do traçado que temos autoridade para corrigir os desvios.
Num processo de desfecho incerto há uma certeza que conviria reter: a aspiração de um povo à liberdade política e cívica, à dignidade, à democracia. Importando menos ou em segundo plano, se os revoltosos são estudantes, operários, comerciantes ou religiosos. Ou antigos soldados com a bandeira da Líbia pré-Khadafi – para voltar à questão das vestes com que se apresentam as revoluções.
A questão não é saber se a Revolução Francesa ou o "25 de Abril" alcançaram plenamente os objectivos populares mas saber se estes beneficiaram com aquelas lutas.
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