4.8.08

Guerra e mal-entendidos (3)

Foi de caixão-à-cova aquela bebedeira.
Nunca mais apanhei uma tosga como aquela.

Numa daquelas noites em que o militar se rende à nostalgia enquanto espera, quase indiferente, a noite derradeira, se quase todos dormem e só o arvoredo escuro em torno vela, há que puxar pelo sono que não vem.


E uma bebida forte, dessas que nos corroem a garganta, o estômago e o cérebro, é o que se aconselha para vencer esta guerra.
Foi neste estado que me sentei e pedi ao soldado:
- Dá-me um café! Um café sem açúcar!

E enquanto esperava pela mistela amarga, voltei-me para trás e do púlpito tosco onde me sentava, proclamei um elogio inesperado ao amigo Álvaro que já estava deitado, talvez sonhando com a sua terra que não era aquela. Estávamos em Angola, destacamento da Cabaca, salvo erro, e do mundo onde nascemos só chegava a Lua e a saudade.

O elogio era às suas qualidades, as do Álvaro, um homem às direitas, um homem de esquerda – passe o paradoxo. Era nele que eu confiava e com quem discutia sobre este mundo e o outro, o mundo das ideias, dos valores, e da única guerra que era nossa, tão diferente daquilo a que fôramos mandados.

Firme no banco verde desbotado, voz de canhão arranhando-me a garganta, grandiloquente como qualquer borracho, eu dizia das grandes qualidades, da sabedoria, do humanismo do Nosso Furriel, e de como eu sentia o privilégio, e todos deveriamos sentir, de ter connosco o camarada Álvaro. Entretanto, Álvaro ressonava na caserna.

Quando me decidi a tomar o café, além de amargo já estava frio. E assim que o levei por onde antes passara vodka e whiski, caiu-se-me a cabeça no balcão e mais não digo ainda que me seja perguntado porque quando acordei estava já deitado, na caserna.

Passaram-se três anos, creio eu, quando falei com o Álvaro pelo telefone, eu já no Porto, ele na sua terra que a guerra para nós não foi o fim.


– Estiveste no comício do Palácio? – perguntou.

E antes que eu tivesse tempo para responder, acrescentou com uma sonora gargalhada:
- Foi uma festa. Os gajos ficaram à rasca.

Abreviando: o que é que se passou? Álvaro, grande amigo no "Ultramar", tinha participado numa provocação a um comício do Partido Comunista e disso me vinha dar notícia com grande entusiasmo como se a minha guerra ainda fosse a sua. Não sabia ele que por essa altura já eu era militante do partido que ele foi provocar – sem grande resultado, ao contrário do que ele imaginava.

Fiquei-lhe, então, a conhecer a veia esquerdista que o mato moderava para o tom em que a gente se entendia. Depois, o mêdo de expor até ao fim o pensamento de um e de outro, antes de 74, fez o resto, instalou o equívoco do nosso entendimento.

Não me lembro do seu segundo nome, mas não me esqueci do que aprendi com isto:

que o que se não diz faz muita falta.

Pintura acima: The Soldier Drinks, de Chagall

1 comentário:

Júlia Coutinho disse...

Fartei-me de rir... são os tais equivocos daqueles tempos sombrios em que só se falava abertamente quenado bêbedo ou preso ... A Maria Lamas disse para os jovens do MUD Juvenil que eles mais pareciam em liverdade quando, ao serem presos cerca de 50 em Dezembro de 52 por a esperarem no aeroporto, puseram em estado de sítio as salas de Caxias. Cantavam e conviviam tão alegremente que Caxias virou um pandemónio.A Pide apressou a sua saida.
Cá fora nunca o poderiam fazer sem... irem presos.
Acho muito interessante este genero de historias memorialistas, e a forma irónica como as escreves é bem mais difícil do que se supõe.
Concordo com o que me dizes no mail, mas gostava muito que colocasses a tua opinião no post relativo à palestra... será possível? de qualquer das formas fui convidada para fazer uma aula sobre o assunto nos cursos de Mestrado e Doutoramento em Historia da Arte Contemporânea na Faculdade de Letras.
Para além se ser extremamente relevante, para mim (e depois dos atritos que me têm sido levantados por uma pessoa) a presença dos princiais membros da familia de JDC.
Beijinhos