Saíu do quarto que, no caso, era a sua casa, e desceu umas escadas, gastas, de madeira, a custo passando entre os vasos de flores que a senhoria plantara, flores e vasos. Vencidos que foram dois andares que lhe pareceram três, encontrou-se na rua do Almada. Desceu a rua e fez descer pela goela o cu de cerveja que restava, só se desfazendo da garrafa no parapeito da vizinha, digo da casa da vizinha, que parecia ter nascido mesmo para esse efeito pela mesma altura em que ele próprio nasceu.
Chegado ao cruzamento com a Ricardo Jorge, dirigiu-se a uma loja onde pôde comprar nada mais, nada menos, que uma caixa de seis. E mais duas avulsas… para a viagem.
Dali até à Praça D. João I, é um pulinho - para quem pular, o que não era o caso. No seu vagar, que ainda faltava muito tempo para o que o levava, atravessou a Avenida dos Aliados, desdenhando de ambos os Rivolis, o Café, primeiro, e o Teatro, adiante. Importantes, para ele, eram o Palácio Atlântico e os dois cavalos, edifício e esculturas imponentes, ao nível do vencedor da batalha de Aljubarrota que daria o nome à praça – o nome do rei, não da batalha.
A tudo isso era alheia a chegada dele, carregado de cerveja por dentro e por fora. Outra batalha, outros heróis, outras glórias o faziam convergir ali onde já se encontravam uma dezenas de outros cidadãos, muitos deles envoltos em bandeiras e proclamando palavras de guerra que mal se percebiam, fosse pelo ruído geral, fosse pela mistura de linguagens – que os havia de diferentes nacionalidades.
Faltariam ainda uns quarenta minutos para a luta, mas o recém-chegado já tomava lugar num dos dez ou quinze “puffs” espalhados pelo recinto, em vez de cadeiras. Ao seu lado, encostadinhas, as cervejas da caixa e as outras.
Esticou-se na almofada de napa, indiferente aos turistas e aos outros, superior a todos na dose de prazer com que se deleitava, como um burguês, na cama fofa que muitos haveriam de invejar daí a meia hora quando começasse a transmissão do jogo.
Entretanto, acariciado pelo sol e fascinado pelo azul claro do céu que se lhe oferecia, ia cogitando sobre aquele momento de conforto e felicidade que lhe proporcionava a Natureza ajudada pelo álcool. Afinal, com uns dez euros apenas, que sendo muito do seu orçamento não era nada quando comparado com o que gastaria, se pudesse gastar, com a viagem ao Brasil e os bilhetes para o jogo, iria desfrutar do mesmo luxo, ali esparramado no “seu” “puff”.
A sua vitória estava assegurada. Tinha vencido o tédio dos ensimesmados que ficam em casa a ouvir rádio enquanto o povo se alegra e sofre, livre e solidário nas ruas e nas praças.
Explorando até aos últimos limites o luxo e o gozo da situação, desapertou o cinto das calças, sentiu que ainda havia espaço para mais cerveja, esticou-se como um cachorro e adormeceu anestesiado pelo álcool e o sol.
Ainda sonhou que estava deitado num campo de futebol enquanto uns miúdos jogavam à sua volta e troçavam dele. Não era um campo de futebol, era o relvado dum jardim - era a memória dos seus tempos de sem-abrigo. Voltou-se sobre o lado direito do corpo como se quisesse com isso afastar aquelas recordações, e o certo é que não tardou a sentir-se viajar num avião, de regresso do Brasil... Até que o avião sofreu uma qualquer torbolência que o atiraria ao chão se não fosse uma mão a segurá-lo. Era um funcionário municipal que recolhia os “puffs”.
Enquanto tentava perceber se chegara ao aeroporto ou a outro sítio qualquer a que os sonhos levam, viu-se ameaçado por dois enormes cavalos de patas no ar. O monumental Palácio Atlântico, porém, transportou-o para a realidade. Compreendeu, primeiro, onde tinha terminado a viagem. Depois, tomando consciência das circunstâncias que o levaram ali, deu-se conta que já não havia jogo nem turistas - as cervejas, apenas.
E regressou a casa, feliz pela vitória de quem quer que fosse. E pela sua.
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