Eu descia a Rua de Passos Manuel e, do outro lado, descia um homem com a cara chapada do José Milhazes, jornalista correspondente na Rússia. Corpo robusto, barba farta, andar negligente, um saco ao ombro que se adivinhava pesado, tinha tudo o que eu podia adivinhar pela fisionomia e pela forma de falar - que era o que eu dele conhecia.
Não fazia sentido, no entanto, que uma personalidade que eu sempre imaginava na casa do carago - como se diz naquelas ruas... - ou, quando muito, entre a baixa de Lisboa e a redacção da SIC, fosse aquele vulto. Porém, no dia seguinte eu lia que o homem esteve a fazer uma conferência no Ateneu Comercial do Porto que fica exactamente na Rua Passos Manuel.
Uns tempos mais tarde, enquanto eu abocanhava uma fatia de pizza no Centro Comercial de Santa Catarina que, por acaso, cruza com Passos Manuel - a rua, não a santa -, quem vejo de nariz no ar a escolher o que comer? A Ellen DeGeneres! Se não era ela era uma irmã. Ou um irmão. Mas desta vez é que a coisa não fazia mesmo sentido nenhum.
A famosa apresentadora da televisão norte-americana, com talk-show próprio, e apresentadora duma cerimónia dos Óscares, pelo menos, ela que também foi actriz, tinha mais que fazer ou mesmo onde passar férias do que no Porto, por mais que a cidade a merecesse. Esta, ainda por cima, eu conhecia de corpo inteiro e a mexer, a andar, a dançar. Mas uma amiga a quem alertei para o evento, desiludiu-me, por assim dizer, depois de olhar a personagem de soslaio: - É lá a Ellen; é parecida; o que é que ela vinha para aqui fazer? E eu achei que a minha amiga tinha razão até ler na imprensa que a fulana esteve mesmo no norte de Portugal - era assim que dizia o jornal.
Não tardou uma semana ou talvez duas ou três que eu voltasse a ser surpreendido com outra das minha visões. Eu estava sentado num daqueles cafés-bares que abriram ultimamente na Rua José Falcão, talvez o Café Vitória, e estavam comigo uns jovens brasileiros a quem eu oferecera a mesa por não terem outra disponível. Aceitaram e disseram que ainda havia de chegar um outro, se eu não me importava... - Estejam à vontade - respondi. - Desde que caiba!
O que eu não esperava era que surgisse na porta em arco, difusamente iluminado por uma tocha decorativa e umas velas espalhadas pelas mesas, um vulto de homem alto, de fartas barbas que se misturavam com não menos farta cabeleira atada atrás do pescoço, o corpo envolvido numa espécie de túnica e calçando umas sandálias de couro.
Os seus olhos muito claros faiscavam e eu soube naquele momento que era o próprio Jesus Cristo que chegava. E porque não? Acaso havia algum dia de ser menos indicado do que outro para Deus voltar à Terra? E seria o Café Vitória menos adequado do que aquele, onde esteve nas bodas de Caná e onde fez aquele número de transformar a água em vinho?
Desta vez não iria deixar-me enganar pela falta de confiança em mim próprio: se era igual a Jesus, era Jesus. Cumprimentou cada um dos meus companheiros que lhe contaram como eu fui generoso ao partilhar a mesa que ocupava. E eu já reconhecia em cada um deles os apóstolos São Pedro, São Lucas e São João. Cumprimentei-o quase de joelhos, levantei-me e dei-lhe o meu lugar. Depois, aturdido, retirei-me em silêncio.
Das duas, uma: ou aquele era mesmo Jesus Cristo ou os circunstantes ficaram convencidos que eu estava bêbado.
2 comentários:
Eu, que lá não estava, tenho por confiável demais tua convicção! E assim vamos nós, parecendo ou sendo também até mais confiantes e confiáveis. Belo texto, António. Se serve de corroboração, não sou jornal mas te asseguro que também vi O dito cujo em minha passagem pelo Porto, durante a famosa ocupação da escola, ano passado.
Amigo Roger:
É um grande prazer ver-te por aqui. E nem precisas de ser tão generoso na apreciação. Espero continuar a merecer as tuas visitas e, quem sabe, alguma produção daí que te pareça pertinente - prometo respeitar as fontes, hehe.
Abraço.
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