9.12.16

Mitologia pseudo-comunista

Quem escreve o “discurso apócrifo” que se segue, não esconde nem se arrepende de ter sido militante do Partido Comunista Português desde 1974 até à “eleição” de Jerónimo de Sousa. Assume as suas críticas aqui como assumiu no interior do Partido, e se fala hoje de fora para dentro do PCP é porque se mostrou definitivamente ocioso falar lá dentro, como adiante se verá.

Em todo o caso, agora como antes, não se trata de um distanciamento político, no sentido estrito, mas de uma profunda discordância com o funcionamento interno do qual os congressos são o embuste mais relevante. 


Lembro.me de um Congresso para o qual fiz uma proposta no sentido de diminuir o peso dos funcionários na composição dos orgãos dirigentes. Por força do "centralismo democrático", tal proposta como todas as outras, não foi do conhecimento senão da direcção central que é composta por... funcionários! O que veio inscrito na "resolução final" do Congresso foi um panegírico texto laudatório do papel dos funcionários do PCP. (1)

Hoje cá fora, como antes lá dentro, a minha posição é a mesma: de crítica e combate contra todas as formas de injustiça social e, nomeadamente, contra todo o autoritarismo, seja ele estúpido ou esclarecido, assumido ou disfarçado.

Serve-me de esqueleto o discurso de encerramento do XX Congresso do PCP, no passado dia 5 de Dezembro, lido pelo Secretário-Geral.


DISCURSO APÓCRIFO
DE ENCERRAMENTO DO XX CONGRESSO DO PCP

Camaradas e amigos
Estimados convidados
Desprezíveis “folhas secas” (2)

Podemos afirmar que alcançámos com êxito os objectivos a que nos propunhamos.

Desde logo, pelo grau de envolvimento e participação de delegados a quem foi servida a ementa por nós elaborada para este banquete de palavras. A sua presença e concordância permanentes com as teses que a direcção do Partido lhes impôs, justificaram o mandato que lhes foi atribuído... pelos dirigentes partidários, funcionários diligentes e remunerados. 


Ninguém vos obrigou. Foi um acto de liberdade e responsabilidade de homens e mulheres genuinamente preocupados, em geral, com a sorte dos mais desfavorecidos, mas a quem não se apresenta nenhuma questão que não seja de aceitação geral, e muito menos se dão a conhecer as divergências internas, para o que praticamos o método do centralismo-democrático tal como o entendemos: ninguém pode saber o que pensam os militantes das outras organizações!

O que importa é que se batem nos seus locais e empresas por uma vida melhor para os trabalhadores e o povo português. No resto confiam nos seus grandes-líderes, o que está bem e nem podia estar melhor. 


Camaradas e amigos
Estimados convidados
Desprezíveis “folhas secas” 

O Congresso confirmou e reafirmou a nossa identidade como partido dos dirigentes da classe operária e de todos os trabalhadores, independentemente da seriedade do nosso funcionamento interno e da credibilidade popular do nosso ideal de sociedade. 


O Congresso confirmou e reafirmou os objectivos supremos, a construção do socialismo e do comunismo, seja o que isso for, de uma sociedade liberta da exploração e opressão capitalistas, confiante nos méritos da ditadura boa. 


Confirmou e reafirmou a sua base teórica, segundo a interpretação da Comissão Política, os seus princípios de funcionamento baseados no centralismo antidemocrático por definição, assentes numa profunda mistificação interna, numa única orientação geral e numa única direcção central.

A concretização do fascinante projecto e objectivo por que lutamos, esse sonho milenar do ser humano de se libertar da exploração por outro homem, o projecto e ideal que nos trouxe a este Partido, possivelmente só será materializado para além das nossas vidas. Ou mesmo nunca, mas nós já cá não estaremos para prestar contas da nossa incompetência.

Viva o XX Congresso! Vivam os congressos todos.
O que a gente quer é festa. Música, Maestro!



(1) Mais de 90% dos membros do Comité Central do PCP, “eleitos” no Congresso, são empregados do Partido ("funcionários"). Isto é, a sua discordância ou menor colaboração com as directrizes centrais põe em causa o seu emprego. 
(2) “Folhas secas” é como Jerónimo de Sousa, citando Álvaro Cunhal, chama aos ex-militantes do PCP, muitos deles bem mais corajosos, dedicados e sacrificados pelo partido do que o indigitado Secretário-Geral. 

Nota complementar

Sim, os congressos do PCP como do PC de Cuba, por exemplo, são preparados com muita antecedência e muito participados. Mas isso que devia servir para o aparecimento e valorização de ideias novas, serve sim, por força do controlismo e do centralismo, para filtrar posições divergentes  - as ideias novas morrem onde nasceram e os textos a aprovar são previamente aprovados por aquele orgão de poder partidário - o grande líder esclarecido.

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