Foi de lá que partimos para o destacamento do Cuango onde me era destinado viver ou fazer pela vida durante ano e meio, se bem me recordo. Era lá que iamos depois buscar os mantimentos, as rações de combate e a correspondência que chegava “da metrópole”.
Anoitecia em Quimbele. O furriel C. já devia ter alinhado pela milésima vez as botas de forma milimetricamente paralela, e já teria assobiado uma dezenas de vezes, uma por cada folha que avançava na leitura de um livro qualquer. Eu aguardava o sono à porta da caserna. Junto de mim estava pelo menos o soldado cozinheiro, que sem ele não seria possível esta história que vos trago.
Não sei a que propósito, e não vou inventar para enriquecer a trama, falou-se de um tempo anterior, da instrução militar, dos quarteis da metrópole. E foi assim que ele me surpreendeu ao dizer que fui eu que lhe dei instrução. Para falar verdade eu não me lembrava de nenhum dos soldados a quem dei instrução em Portugal. De um modo geral, tudo o que era militar era uma mancha verde plasmada no horizonte.
- Não se lembra? Uma vez até esteve a falar connosco assim dumas coisas de moral...
Aqui desconfiei que era ele e não eu quem trocava as personagens da história. Alguém me imagina a ter conversas de moral naquela idade e naquelas circunstâncias? Mas que moral podia eu tratar?
- Até nos falou em a gente comprar uns livros...
Como é costume, os livros trazem luz e o que me parecia uma imagem obscura da memória do soldado, de repente ganha forma e tudo se esclarece. Agora sim, lembrava-me de ter utilizado um tempo que seria destinado a acção psicológica ou outro disparate desse género, para falar de alguma coisa que tivesse interesse para todos, para a vida interior que não para rastejar em lamaçais imaginários ou saltar valas onde se podem fazer pontes. Em todo o caso, como vamos ver, eu estava a fazer “acção psicológica” – isso não nego.
Aquilo de que eu falei com os soldados e que ele invocava agora em Quimbele, era de se criar uma biblioteca para o pelotão: cada um daria uma pequena quantia com que comprariamos alguns livros, e uma vez que eles circulavam por todos, isso oferecia muitas possibilidades de leitura.
E para que a proposta encontrasse apoio entre os circunstantes, falei sobre a vantagem de ler livros e fui ao ponto de dar um exemplo... impensável para aquelas circunstâncias. Nada mais, nada menos, do que A Mãe, de Máximo Gorki ! A história de uma mãe que, por amor ao filho, o ajuda nas suas actividades revolucionárias e se torna, como ele, comunista. Só isso!!!
Já se vê donde vinha a ideia do soldado: na aldeia onde vivia, certamente, nunca ouviu alguém falar de amor e livros que não fosse o pároco local. O raciocínio é compreensível e aceitável. O equívoco seria inevitável. Mas ainda me pergunto se foi um mal-entendido ou se, em última análise, não se tratava mesmo duma questão de moral.
Creio que só depois de regressar de Angola é que encontrei e li um livro que se chama “A superioridade moral dos comunistas”. Mas confesso que não fui eu que o escrevi.
P.s.: Escusado será dizer que fui aconselhado por um oficial a não levar avante aquela ideia, o que eu acolhi até porque não tive “feed-back” da proposta – pudera!
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